sábado, 4 de julho de 2015

Crônica de um Ex-preso [Jornal de Hoje]


Primeiros passos de um homem

Antonio Viana da Silva estava com três amigos e quatro mulheres em um boteco de Felipe Camarão, zona Oeste da…


Antonio Viana da Silva estava com três amigos e quatro mulheres em um boteco de Felipe Camarão, zona Oeste da capital potiguar, quando percebeu que as carteiras esvaziaram. Corria o mês de fevereiro de 1988, a bebida transbordava na mesa, a maconha sobrava no bolso e a farra estava posta. A sequência da noite exigia recursos. Os homens se entreolharam e anunciaram em uníssono: “Voltamos já”. Era a senha para um assalto cometido minutos depois – e determinante no futuro do então jovem de 24 anos. “A gente estava com umas negas (sic) e o dinheiro acabou. Daí demos uma circulada para ver como poderíamos arrumar algum”. Logo avistaram um infeliz nas imediações e decidiram agir rápido. Um punhado de notas e um relógio seriam tomados, como preâmbulo da surra que enviou o sujeito ao hospital, e o mataria horas depois. “Eu tinha uma casinha lá perto, mas tive que abandoná-la. As pessoas queriam nos pegar”. Condenado a 15 anos, começava o calvário.
Dois meses adiante, Antonio entrava na penitenciária João Chaves (hoje exclusiva para mulheres) que, na virada dos anos 1980 para os 1990, era dominada por três indivíduos que entraram para os anais do crime no Estado: Demir, Paulo Queixada e Naldinho do Mereto. “Para mim, foi uma casa de terror. Pensei que não ia sair vivo dali. Sentia que estava no Inferno cheio de diabos em volta”.
Duas facas na cintura e muita droga na cabeça forjaria uma blindagem contra toda a loucura do sistema penal. “Ou eu matava, ou morria”. Momentos de tensão afloravam durante rebeliões e tentativas de assassinar o triunvirato do Caldeirão do Diabo. “Eles mataram o traficante da João Chaves [o também popular Chocolate]. O povo ficou doido. Era ele que abastecia todo mundo. E, você sabe, a cadeia tem que estar sempre abastecida de droga para tudo ficar mais calmo”.
Solteiro, sem filhos, desde os oito anos vagava pelas ruas de Natal. Seu ponto predileto era a Praia do Meio. A fuga de Mãe Luiza, onde morava, foi concretizada após a morte da mãe. “Ela lavava roupa e criava a gente com muita dificuldade [mais dois irmãos], porque meu pai tinha ido embora. Eu não conheço ele. Quando ela morreu, eu fui embora. Ficava na praia. Lá tinham uns hippies que me ofereceram maconha. Foi aí que comecei no mundo das drogas”. Mais de uma década em meio à degradação urbana metamorfosearam o menino em um bandido feroz. Assaltos a farmácias, postos de gasolina e lanchonetes sustentavam o vício e noitadas em cabarés. “Eu não queria saber de nada. Era sem limite. Só no dia que fui preso é que tive de ficar quieto”.
Foram sete anos no que era o maior complexo penitenciário do Estado. Até que a liberdade chegou, em 1995. Meros quatro dias depois, o que tinha sido planejado na cela, foi executado. “Eu tinha combinado com um colega que íamos roubar, quando saíssemos”. Viciado em crack, um novo crime seria flagrado. Antonio estava na avenida Coronel Estevam, no Alecrim, com um comparsa. A vítima tinha sido detectada. “Eu já estava com o bolso cheio de dinheiro de outros roubos, não precisava daquilo. Mas cresci o olho nos cordões que ele usava. Ele estava com as duas mãos nos bolsos e não percebemos que estava armado. Quando chegamos perto, ele começou a atirar na gente. Nós revidamos e terminamos acertando uma mulher que não tinha nada a ver. Fui preso na mesma noite”.
O cansaço com o sedentarismo na prisão culminou em uma corrida abortada em plena perseguição policial. Agora a Justiça dos homens seria mais dura. Se na primeira vez, menos da metade do tempo de condenação fora cumprido, na segunda, passaria oito anos e seis meses trancafiado, dos dez previstos. Mas não ininterruptos. Uma fuga com mais 17 colegas de confinamento mostraram a luz do sol sem muros, policiais e proibição. Estava de volta à rotina criminosa. Mais quatro anos como foragido calejaram o pária social. Os crimes só eram interrompidos com as frequentes crises de gastrite, desenvolvida com o acréscimo de fármacos, como Rupinol, no coquetel alucinógeno que usava para esfumaçar a realidade. “Só assim eu conseguia viver. Posso dizer que foi o pior momento de minha vida. Pensei que ia morrer”.  Médicos de uma clínica no Tirol, onde costumava “pastorar carros”, o ajudaram no tratamento, que incluiu uma cirurgia.
A recaptura da polícia o jogaria entre as feras outra vez. Sua última temporada na cadeia transcorreria entre 2000 e 2008. Mais sossegado, ainda que viciado, aceitou a clausura e voltou-se para a fé. No cenário macabro e humilhante, recebia convites de companheiros para aderir a religião evangélica. “Dessa última vez que fui preso, eu pensava em me converter. Mas eu sabia que escandalizaria o Evangelho, se alguém me provocasse. Por isso, decidi que, assim que saísse, aceitaria Jesus, mas não lá dentro”. Semianalfabeto (Antonio diz saber escrever o nome, mas sente dificuldade para ler textos simples), a saída foi um alento para o irmão mais velho que o acolheu. Desde então, garante que nunca mais bebeu nem fumou. “Quem me salvou foi Jesus. Jamais vou voltar para aquela escuridão. Hoje meu lazer é ir à igreja”.
Novo rumo
Um dos fatos que contribuíram para o retorno da dignidade foi a entrada no programa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte para ressocialização de presos, chamado Novos Rumos. Procurado por uma comissão do órgão, Antonio conseguiu emprego na construção do estádio Arena das Dunas. Há um ano e quatro meses, ele ocupa um posto no Setor 7 na polêmica obra que promete alterar a paisagem arquitetônico-urbanística da cidade em troca de uma dívida que ultrapassa os R$ 400 milhões e do direito de participar da maior festa do esporte mundial. É lá que, todos os dias, o homem que passou 15 anos e seis meses atrás das grades labuta pelo ganha pão e vislumbra um futuro distante do submundo do crime. “É impossível eu voltar a errar daquele jeito”.
Por R$ 200, alugou um quarto e sala em Mãe Luiza, espaço que abriga cama, geladeira e demais pertences adquiridos com o salário de trabalhador da construção civil. Magro, moreno, de olhar expressivo e conversa fácil, Antonio Vieira da Silva é integrante do grupo evangélico Liberto Por Cristo. Nos finais de semana, busca menores infratores e moradores de rua para salvá-los com seu testemunho. “Vamos, principalmente, nas bocas de fumo. Hoje minha vida é evangelizar. Falo tudo que passei e de como eu estou”. Aos 48 anos, paz é tudo que deseja. De acordo com o ex-presidiário em liberdade condicional, vizinhos o tratam com cordialidade, o que aumenta o sentimento de reintegração.
Cinco anos de liberdade trouxeram uma mulher para sua vida. O relacionamento firme germinou o desejo de casar. “Todo homem tem direito a ter uma família e ser uma pessoa de bem. Paguei pelos meus erros, mas estou curado. Sem Jesus eu não seria nada”. Durante a entrevista, diversos colegas o cumprimentaram – como que um afago em quem viveu o lado sombrio da existência. A visão do estádio natalense para a Copa do Mundo motiva o orgulho recém-conquistado. “Me alegra muito estar aqui todos os dias. Vai ser uma coisa boa para a cidade e que vou contar para meus filhos. É um patrimônio que ajudei a construir. E só em saber que meu nome estará no memorial que será construído para todos que trabalharam aqui, já fico mais contente”.

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