Memórias de um Cárcere potiguar
Publicação: 2006-03-26 00:00:00 | Comentários: 1
O muro e as paredes foram derrubados. Mas a prisão (aquela que só os presos sabem) não chegou ao fim. Agora ela está guardada em silêncio pelo prisioneiro que ocupa a cela 8 do regime semi-aberto da Penitenciária Doutor João Chaves. Manuel Luciano da Silva, o “Manu”, 56 anos, é o preso vivo que mais tempo passou dentro do “Caldeirão do Diabo”. São 29 anos e quatro meses de cadeia. “Faltam ainda quatro anos para eu matar”, diz.
Quando sair, ele tem dois objetivos: esquecer tudo o que passou; e tentar uma nova vida. Manu já iniciou o primeiro. Fala pouco sobre o que viu. Entende que fazer isso é delação. “Cagüetar não faz parte do meu vocabulário”. O outro objetivo, hoje é mais uma reflexão: ele sobreviveu ao Caldeirão, mas perdeu a vida.
A história de Manuel começou na feira no Alecrim, quando ele matou um ladrão. “Na época trabalhava com avental. Dinheiro miúdo num bolso e graúdo no outro. O ladrão veio por baixo, passou a gilete. Eu não ia aguentar aquilo no meio da feira. Pega num pega, eu disse: ‘Peraí’... Pegue-lhe faca”. A entrada na João Chaves foi em agosto de 74. Na época ainda não era o Caldeirão.
A deterioração veio nas décadas seguintes, quando crimes brutais passaram a acontecer. Delitos como o de “Baraúna”, detento que na opinião de “Manu” foi o pior que já passou pelo local. “Ele era perverso. Matou o cara. Arrancou a cabeça, abriu ele, tirou um pedaço do fígado e comeu”. Mais histórias? Ele não diz. O máximo é indicar que “Naudinho do Mereto”, “Paulo Queixada” e “Demi” integravam um grupo de dez detentos que fizeram um pacto com o demônio.
“Essa época dos ‘cãozinho’ foi a que mais ferveu aqui. Ninguém respeitava ninguém. Do grupo citado, apenas um está vivo, fora do presídio, “em algum lugar no Rio Grande do Norte”. Quem? Manu não diz. “Eu me recordo, mas isso não cabe a mim, não. É do preso: ver, ouvir e se calar”.
Salvo e condenado pela solidão
Na entrevista concedida à TN, sempre firme, Manu explicou que só sobreviveu ao caldeirão porque sempre foi só. “Só eu e Deus”. Porém, nos últimos minutos de conversa, ele desmoronou. A mesma solidão que o salvou é também seu maior tormento. Chorando, Manuel contou que foi abandonado pela família e por causa da João Chaves não pode cuidar do filho mais velho, Lúcio, 23 anos. “Ele vive abandonado. Dorme ao relento. Apanha da polícia. É viciado em crack”.
Também por causa do Caldeirão do Diabo, o preso é um homem doente. “Quero é sair da cadeia. Mas vou sair acabado. Herniado. Pelejando para me operar. Não faz vergonha dizer o que eu sinto. Não faz vergonha chorar. Perdi mais que uma vida dentro da cadeia. Mostrei a verdade aos meus filhos.Mas o mais velho está por aí, sofrendo. Só o senhor sabe onde ele está”.
Picachu, o último preso do Caldeirão do Diabo
Há sete anos, o Caldeirão do Diabo não fervia tanto quanto na década de 80 e início dos anos 90. Mas a imagem da penitenciária não tinha mais como ser dissociada da violência. A João Chaves dava medo. E foi com esse sentimento que Chirleno da Silva Agostinho, hoje com 27 anos, entrou lá. “Eu tinha medo de tirar cadeia aqui. Porque é tenso o clima. Quem fala alto morre”.
Condenado por assassinato e assalto a nove anos de prisão, “Picachu” não passava de mais um preso em meio a tantos outros. Dia 20 passado, quando o regime fechado da prisão foi extinto, ele diferenciou-se. Picachu tornou-se o último preso da Penitenciária Central Doutor João Chaves. “É um alívio sair daqui”. Por escolha própria, ele foi transferido para Mossoró.
Numa entrevista rápida, Chirleno contou que a passagem pela penitenciária foi pior do que pensava porque “ninguém se importa com o direito do preso”.
Da João Chaves a lembrança mais marcante que ele leva é a de um assassinato. “O cara matou o outro por causas de droga. Deu sete facadas. Morreu nos meus pés. Não pude fazer nada. Era amigo meu, mas morreu nos meus pés”. Para o futuro, o detento pretende retomar a profissão de decorador. Quer também ter filhos. E poder contar a eles como “Picachu” virou história: “Se a João Chaves for um shopping, vou contar a meus filhos que um dia isso foi uma cadeia e que eu passei por aqui”.
Do “Caldeirão do Diabo” ao “da Cultura”
A Penitenciária Central Doutor João Chaves começou a ser construída em 1953, quando o governador do Estado era Silvio Pedroza. Por falta de recursos, a obra não foi concluída. Em 1963, quando o governador era Aluízio Alves, a obra foi retomada. Em 1968, no governo do Monsenhor Walfredo Gurgel, a penitenciária foi concluída. Naquela época, o conjunto Potengi não passava de um esboço do que é hoje.
As primeiras casas naquela região foram ocupadas pelos militares que cuidavam da segurança da penitenciária. Nos anos 70, o presídio recebeu presos políticos. François Silvestre, hoje presidente da Fundação José Augusto; e o jornalista Rubens Lemos foram alguns deles. O apelido de “Caldeirão do Diabo” só veio na década de 80. Segundo os próprios presos, o jornalista Ubiratan Camilo cunhou a expressão.
Nada é à toa: nessa década entraram na João Chaves presos como “Naudinho do Mereto” e “Paulo Queixada”. Na década de 90, a fama do Caldeirão, graças às rebeliões e casos violentos, só cresceu. Consagrando o mito, vieram as mortes brutais de detentos considerados muito perigosos. Paulo Queixada foi morto e esquartejado em 1995. Há cerca de três anos, laudos pedidos pelo Ministério Público do Estado atestaram que o Caldeirão do Diabo tinha de ser derrubado.
Ano passado, o Estado decretou que nenhum novo preso deveria ser enviado à João Chaves. Este mês, foi encerrado o regime fechado. O relógio da cadeia marcava 16h37 quando o último detento saiu. Após esse horário, nas celas vazias, restaram garrafas plásticas cheias de água ou areia, lençóis, restos de comida, dois gatos, pôsteres de mulheres e inscrições nas paredes (“João Chaves lugar difício de si viver”). Fantasmas? Talvez. Quinta-feira (23) pela última vez, em frente à João Chaves, houve interdição: a penitenciária foi demolida. Em seu lugar será erguido um espaço cultural orçado em R$ 13,5 milhões.
Quando sair, ele tem dois objetivos: esquecer tudo o que passou; e tentar uma nova vida. Manu já iniciou o primeiro. Fala pouco sobre o que viu. Entende que fazer isso é delação. “Cagüetar não faz parte do meu vocabulário”. O outro objetivo, hoje é mais uma reflexão: ele sobreviveu ao Caldeirão, mas perdeu a vida.
A história de Manuel começou na feira no Alecrim, quando ele matou um ladrão. “Na época trabalhava com avental. Dinheiro miúdo num bolso e graúdo no outro. O ladrão veio por baixo, passou a gilete. Eu não ia aguentar aquilo no meio da feira. Pega num pega, eu disse: ‘Peraí’... Pegue-lhe faca”. A entrada na João Chaves foi em agosto de 74. Na época ainda não era o Caldeirão.
A deterioração veio nas décadas seguintes, quando crimes brutais passaram a acontecer. Delitos como o de “Baraúna”, detento que na opinião de “Manu” foi o pior que já passou pelo local. “Ele era perverso. Matou o cara. Arrancou a cabeça, abriu ele, tirou um pedaço do fígado e comeu”. Mais histórias? Ele não diz. O máximo é indicar que “Naudinho do Mereto”, “Paulo Queixada” e “Demi” integravam um grupo de dez detentos que fizeram um pacto com o demônio.
“Essa época dos ‘cãozinho’ foi a que mais ferveu aqui. Ninguém respeitava ninguém. Do grupo citado, apenas um está vivo, fora do presídio, “em algum lugar no Rio Grande do Norte”. Quem? Manu não diz. “Eu me recordo, mas isso não cabe a mim, não. É do preso: ver, ouvir e se calar”.
Salvo e condenado pela solidão
Na entrevista concedida à TN, sempre firme, Manu explicou que só sobreviveu ao caldeirão porque sempre foi só. “Só eu e Deus”. Porém, nos últimos minutos de conversa, ele desmoronou. A mesma solidão que o salvou é também seu maior tormento. Chorando, Manuel contou que foi abandonado pela família e por causa da João Chaves não pode cuidar do filho mais velho, Lúcio, 23 anos. “Ele vive abandonado. Dorme ao relento. Apanha da polícia. É viciado em crack”.
Também por causa do Caldeirão do Diabo, o preso é um homem doente. “Quero é sair da cadeia. Mas vou sair acabado. Herniado. Pelejando para me operar. Não faz vergonha dizer o que eu sinto. Não faz vergonha chorar. Perdi mais que uma vida dentro da cadeia. Mostrei a verdade aos meus filhos.Mas o mais velho está por aí, sofrendo. Só o senhor sabe onde ele está”.
Picachu, o último preso do Caldeirão do Diabo
Há sete anos, o Caldeirão do Diabo não fervia tanto quanto na década de 80 e início dos anos 90. Mas a imagem da penitenciária não tinha mais como ser dissociada da violência. A João Chaves dava medo. E foi com esse sentimento que Chirleno da Silva Agostinho, hoje com 27 anos, entrou lá. “Eu tinha medo de tirar cadeia aqui. Porque é tenso o clima. Quem fala alto morre”.
Condenado por assassinato e assalto a nove anos de prisão, “Picachu” não passava de mais um preso em meio a tantos outros. Dia 20 passado, quando o regime fechado da prisão foi extinto, ele diferenciou-se. Picachu tornou-se o último preso da Penitenciária Central Doutor João Chaves. “É um alívio sair daqui”. Por escolha própria, ele foi transferido para Mossoró.
Numa entrevista rápida, Chirleno contou que a passagem pela penitenciária foi pior do que pensava porque “ninguém se importa com o direito do preso”.
Da João Chaves a lembrança mais marcante que ele leva é a de um assassinato. “O cara matou o outro por causas de droga. Deu sete facadas. Morreu nos meus pés. Não pude fazer nada. Era amigo meu, mas morreu nos meus pés”. Para o futuro, o detento pretende retomar a profissão de decorador. Quer também ter filhos. E poder contar a eles como “Picachu” virou história: “Se a João Chaves for um shopping, vou contar a meus filhos que um dia isso foi uma cadeia e que eu passei por aqui”.
Do “Caldeirão do Diabo” ao “da Cultura”
A Penitenciária Central Doutor João Chaves começou a ser construída em 1953, quando o governador do Estado era Silvio Pedroza. Por falta de recursos, a obra não foi concluída. Em 1963, quando o governador era Aluízio Alves, a obra foi retomada. Em 1968, no governo do Monsenhor Walfredo Gurgel, a penitenciária foi concluída. Naquela época, o conjunto Potengi não passava de um esboço do que é hoje.
As primeiras casas naquela região foram ocupadas pelos militares que cuidavam da segurança da penitenciária. Nos anos 70, o presídio recebeu presos políticos. François Silvestre, hoje presidente da Fundação José Augusto; e o jornalista Rubens Lemos foram alguns deles. O apelido de “Caldeirão do Diabo” só veio na década de 80. Segundo os próprios presos, o jornalista Ubiratan Camilo cunhou a expressão.
Nada é à toa: nessa década entraram na João Chaves presos como “Naudinho do Mereto” e “Paulo Queixada”. Na década de 90, a fama do Caldeirão, graças às rebeliões e casos violentos, só cresceu. Consagrando o mito, vieram as mortes brutais de detentos considerados muito perigosos. Paulo Queixada foi morto e esquartejado em 1995. Há cerca de três anos, laudos pedidos pelo Ministério Público do Estado atestaram que o Caldeirão do Diabo tinha de ser derrubado.
Ano passado, o Estado decretou que nenhum novo preso deveria ser enviado à João Chaves. Este mês, foi encerrado o regime fechado. O relógio da cadeia marcava 16h37 quando o último detento saiu. Após esse horário, nas celas vazias, restaram garrafas plásticas cheias de água ou areia, lençóis, restos de comida, dois gatos, pôsteres de mulheres e inscrições nas paredes (“João Chaves lugar difício de si viver”). Fantasmas? Talvez. Quinta-feira (23) pela última vez, em frente à João Chaves, houve interdição: a penitenciária foi demolida. Em seu lugar será erguido um espaço cultural orçado em R$ 13,5 milhões.
Fonte: Tribuna do Norte
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